domingo, 4 de abril de 2010

Um coração para dois, por favor



Reparou que seu rosto estava um pouco mais amarelado, com as manchinhas da pele destacadas e olheiras conquistadas por dias de internamento. O cabelo já não sabia mais o que era ar livre, o sorriso já não tinha tanta vivacidade. Deitado, naquela cama de hospital, está um jovem rapaz doente, e de pé, ao seu lado, aquela que talvez poderia ser sua esposa. Mas quem sabe não dê tempo deste dia chegar, só no pensamento. Já cantava Cazuza: "o mundo é um moinho, vai triturar seus sonhos tão mesquinhos". E ela sentia na pele cada palavra dessa frase, ao olhar para aqueles olhos azuis tristonhos.
Doença traidora, não deu chance de uma história bonita continuar a se desenrolar pelas avenidas tortas da cidade - e foi parar em um quarto branco de hospital. Ela, a garota morena de olhos grandes e bochechas salientes, apoiou o rosto na cama e aceitou um afago do cara legal da festa da amiga. Ele olhava para ela, já maltratado pelo problema no coração, e tentava dar o seu melhor sorriso, fazendo-a mergulhar no mar falso de tranqüilidade dos seus olhos. Ela lembrou de como ele a fez rir naquela festa, de como valeu a pena ceder à tentação de um beijo roubado, e então música, palavras, noite estrelada, uma chance. Aceitaram a chance, e por isso estavam ali. Ao pensar nisso, deixou escapar duas lágrimas silenciosas pelo rosto, enquanto apertava cada vez mais forte a mão carinhosa dele. "Por que você?", pensou com mágoa na alma. "Não podem te levar de mim, não é justo".
- Shhh... não chora, não. - ele disse, limpando os olhos da morena com delicadeza.
- Não podem te tirar de mim, não agora! Por que você? - ela fala chorando cada vez mais descontroladamente, sentindo o peso do mundo todo nas costas.
- Calma, amor... A gente não pode fazer nada, não dá pra escolher o que vai acontecer com a gente. Segura a minha mão. Olha pra mim: vai dar tudo certo, confia em mim.
- Você tem tanta coisa pra viver ainda! Olha aonde te colocaram, nesse quarto horrível de hospital, enquanto você poderia estar vivendo como qualquer outra pessoa comum. E a nossa vida? Não sabemos se poderemos ter filhos, se vamos conseguir nos casar e tomar café da manhã juntos, se vamos conseguir dançar novamente. Não podemos viajar juntos sem que seu cardiologista te persiga a cada duas horas, não podemos ficar sozinhos nem sair de casa para nada. Eu quero ter você pra mim. - ela diz, olhando fundo nos olhos azuis em que busca uma resposta, uma cura vinda de não se sabe onde mas que se tem fé que chegará.
- Eu amo você, sabia? - seu rosto pálido se contraiu em um sorriso - Tudo vai ficar bem, deita aqui comigo.
Ela deitou ao lado dele, numa cama apertada para um romance tão grande, tão bonito e ironicamente cheio de vida. Um coração saudável e um doente, lado a lado competindo juntos em uma maratona de cem metros.
- Aceita um coração doente? - ele passa seus braços ao redor dela e lhe dá um beijo na testa.
A garota de olhos espertos espia as paredes do quarto apertado e sem graça do hospital aonde tem passado boa parte dos últimos dias, e ri timida e falsamente sabendo que não havia a menor graça. Sente seu coração sendo apertado pelos músculos do peito, como se estivesse inchado e sendo sufocado - como se estivesse doente. Sente vontade de correr pelo planeta todo atrás de um médico decente que pudesse curar o coração dele, sente vontade de gritar forte até sumir a voz, faria qualquer coisa só para tê-lo por perto por mais tempo. O tempo destrói e arrasa; a falta de tempo também. Ela aperta os dedos nos braços dele, como se fossem arrancá-lo dela. Pelo menos, era o que sentia que ia acontecer, dali a semanas? Dias, talvez.
- Se eu pudesse - parou no meio da frase com um seco na garganta, engasgou com as palavras na cabeça que faziam-na ficar tonta - Se eu pudesse, te daria o meu coração. Dividiria com você, faria o que fosse possível pra que você vivesse mais comigo. Podia acontecer tanta coisa bonita, sabe?
- Já está acontecendo. Desde que você apareceu na minha vida. Eu não reclamo de nada, porque ter você aqui comigo é a única coisa que eu mais queria - e está acontecendo. Você já me deu seu coração, eu sei disso, eu sinto. Mesmo doente e fraco, o meu está pleno de amor por ti. Ele bate por você, então fica comigo.
Ela deixa escorrer mais lágrimas que repousam no peito dele, encosta sua cabeça naquele quentinho acolhedor e ouve o "tum tum" já meio descompassado e mais fraco que da última vez que escutou. "Injusto, mil vezes injusto! Tem tanta gente má nesse mundo, tanto ladrão, malandro, assassino, por que escolheram você?", pensava com raiva. Tinha tanto amor no peito, tanto amor naquele quarto, naquelas vidas. Tanto amor que algumas pessoas jamais sintam em suas vidas inteiras. O monitor dos batimentos cardíacos apitava regularmente indicando pulso estável, podendo classificar também como vida a salvo, ou qualquer termo que aliviasse a dor da linda morena. Com o amor em mãos, os corações temporariamente a salvo, ela mergulhou no azul dos olhos do rapaz e beijou ternamente seus lábios, com ardor e paixão. Encostou novamente a cabeça em seu peito e continuou a vigiar seu fraco coração. Coração cheio de amor pra dar - mas que infelizmente não aguentasse tanto, que corre o risco real de explodir. "Mas, se fosse pra morrer assim", ele pensou calmo, "morreria feliz. Morreria amando".





Clarissa M. Lamega

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