Dirijo o carro na chuva fina do começo da noite que, mal sabia eu, seria a melhor de todo o resto das minhas noites. Abro o porta-luvas para pegar o paninho e enxugar o vidro embaçado, enquanto vejo rolar de um montinho de bagunças aquele chaveiro cheio de penduricalhos que você guardou ali "para eu não me esquecer de você", e logo começo a rir da besteira que é você achar que eu me esqueceria de você. Olho no relógio, dez pras oito, guio até sua casa e feito adolescente permaneço batendo o pé no chão em um tique nervoso até você abrir a porta. Seguro as mãos nos bolsos pra controlar a ansiedade e não te deixar perceber que por dentro mil coisas passavam pela cabeça. Você abre a porta, me beija de leve e marca minha boca com batom recém-passado. Ainda está descalça e usa um vestido que te deixa linda, com os cabelos longos soltos cobrindo os ombros nus. Te digo como você está linda, e sinto você toda desconcertada com a minha pontualidade e seu atraso, como sempre ainda incompleta. Mas já é de costume, e eu acabo adorando a sua cara de nervosismo e pânico, sua vontade de fazer mil coisas e querer ter um encontro perfeito. Enquanto espero circulo pela casa que tem seus detalhes em cada canto e em um flash até me imagino morando ali. Rio e apago a bobeira rapidamente da cabeça, no momento exato em que te vejo vindo na minha direção. Maravilhosa, com um sorriso nos lábios desenhados à mão por Deus. Te vejo caminhando em câmera lenta, e até consigo me sentir como noivo te esperando no altar, coração palpitando frenético, seus olhos puros sorrindo para os meus. Premonição, quem sabe? Talvez, mas naquele momento te senti inteiramente minha, me senti inteiramente seu, como aquelas cenas que a gente sabe que serão importantes antes mesmo de acontecerem. É alguma coisa que marca, que muda o rumo, e que de alguma forma começa a ter muita importância na vida da gente.
A gente ria sem motivo, feito duas crianças indo para o parque de diversões. Sabe quando dá certo ser completamente feliz, sendo inteiro? Ao seu lado, naquela noite, eu sabia que isso estava acontecendo. Inédito, inexplicável. Ao entrar no carro, você imediatamente identificou o chaveiro que deixei à mostra, sorriu para mim. E eu percebi o quanto seu sorriso me revirava inteiro por dentro, fazia uma tremenda bagunça e eu já não sabia o que sentia. Mas tudo o que estava ali era bom, me dava uma calma e uma vontade de seguir adiante, entende? Tudo o que te fizesse sorrir, me faria sorrir também; tudo o que te desse brilho aos olhos, me daria um ínfimo raio de luz que ainda nascia do meio do escuro. E nessas nossas bobeiras eu te deixava me guiar pelas mãos, levando junto todo o resto do corpo e dos sentidos.
Chovia quando chegamos ao restaurante, e parei o carro em frente à entrada para você descer sem se molhar. E eu me lembro perfeitamente bem dos seus gestos ao hesitar para descer, voltar seu rosto para o meu e beijá-lo em misto de êxtase, animação e frescor, como quem agradece a um presente. Jantamos, conversamos, rimos. Havia certos momentos em que eu me desligava completamente de tudo o que me dizias, e não escutava mais nada do som que vinha de fora, só o coração acelerado por dentro. Uma bobeira inevitável crescia resultante do estado de contemplação de um sorriso seu. Os ruídos não eram mais audíveis, tudo ao redor se fazia em câmera lenta, e os seus olhos brilhavam a cada palavra sua. Eu acompanhava com o olhar uma mecha de cabelo sua que escorria diante dos olhos e suas mãos pequenas que logo a colocavam em seu lugar, e seus risos que me despertavam me deixavam ainda mais maluco. Naquele instante eu faria tudo pra que sua risada não se perdesse, eu poderia até começar a fazer palhaçadas e contar aquelas minhas piadas sem graça mas que nós rimos por serem tão desastrosas, só para não deixar vazar o encanto daquele momento. Eu poderia varar a noite ali sentado só pra te ouvir falar daquele sonho seu em que você despencava em uma piscina de pipocas coloridas, ou da vez em que o cachorro derrubou aquela sua tia mesquinha na terra. Só pra segurar um pouquinho mais a sua risada. E se você quisesse, poderia até contar a mesma história três vezes seguidas, porque eu não ia enjoar de te ver rindo toda boba feito criança arteira.
Depois, sem hesitar, você me falou: "vamos embora?" com a expressão suspeita de quem tem tudo planejado, então saímos. "Como não ir?", eu queria perguntar. E como te deixar sair sem me levar junto, se a cada vez que se abria aquela covinha no seu sorriso a minha vontade era me jogar e me deixar ficar para sempre afundado nela? Como não te seguir aonde você quisesse ir, se a cada vez que sua mão delicada segurava a minha eu me sentia mais forte? Como, meu Deus, não me deixar ser levado por essa mulher que tem o mais bonito sorriso arrasa-quarteirão? Me explica como não ter deixado que você planejasse comigo nossos dias a partir dali. Comecei a andar para perto do carro, e você logo me puxou dizendo que seria um desperdício jogar fora uma noite bonita daquelas. Estendi minha mão para segurar desajeitado seus dedos delicados entrelaçados aos meus. Justo os meus, que não tinham tato, tão desacostumados com outros dedos para proteger e guardar: foram os meus dedos que firmaram os teus. Andamos um pouco debaixo de um tapete de estrelas, mas logo começou a chover. Tirei meu casaco, como um bom cavalheiro, para te esconder da chuva, mas você escapou de debaixo do casaco e começou a rir. Eu não entendi mais nada, e cada vez mais as gotas escorriam pelo seu cabelo, borravam sua maquiagem, encharcavam sua roupa, e você me puxava para dançar enquanto cantava "singing in the rain" como louca no meio de uma praça. Me divertia pelo simples fato de te ver cantando e pulando sem importar-se com quem estaria olhando ou o que estaria achando. Me contagiou com seus olhos brilhantes mais uma vez, e lá estávamos os dois chutando poças de água e girando na chuva sem entender nada. Eu não queria estar com mais ninguém, em nenhum outro lugar do planeta. Estava sendo feliz e vendo chover amor pela primeira vez na vida. Rimos até cansar, quando olhei para seu rosto com os cabelos escorridos e uma gota de água que pulava naquele exato momento da covinha do seu sorriso. E eu posso te jurar que a minha vontade era te pedir em casamento ali mesmo, ajoelhado em meio às poças de água. Feito noiva, te pegar no colo e saber que dali em diante serias meu tesouro, meu bem, meu amuleto.
Depois de fazer a coisa mais maluca da minha vida toda, depois de saber que você deixaria viver ser mais bonito, nos escondemos debaixo da Catedral da Praça Tiradentes. Olhei para seu rosto de contornos leves, todo, todo molhado e comecei a rir. Rir do nada e do tudo; do tudo que foi ter a certeza que era você. Você quem eu esperava por esses anos todos, você quem eu queria e que de certa forma me esperava também, você quem fazia aquele bolo com calda de chocolate e sempre lambuzava meu rosto, que deixava bilhetinho escondido no bolso do meu casaco, que andava com as minhas blusas fazendo graça. Você quem me faria rir escutando pela milésima vez aquela piada, e que teria a audácia de tirar um sarrinho de mim e me deixar mais leve depois de um dia difícil. Eu sabia que seria você, naquele instante em que rimos de tomar chuva e que senti seu perfume molhado mais forte em mim, em que te cobri com minha jaqueta aos pés de Deus naquela igreja. Dessa vez soava mais forte a minha certeza, concebida pelo "casa comigo?" no seu ouvido. Nos meus braços eu te cuidava, escutava sua resposta sim e me apaixonava pelos seus olhos, tudo ao mesmo tempo. Sem anel, nem jantar de noivado, nem padre, nos pertencemos ali mesmo quando você aceitou ser minha. Doei o resto dos meus dias dos próximos 25 anos para te fazer feliz, para rir e aprender a viver com você. E hoje, minha querida, ainda és minha pequena da mesma maneira como naquela noite, há anos atrás. E eu tive certeza absoluta, que eram os seus dedos finos que deveriam guiar os meus desajeitos.
PS. Obrigado por me deixar morar nas covinhas do seu sorriso, é o melhor lugar do mundo para se estar.
Do seu, sempre seu.
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Clarissa M. Lamega