terça-feira, 11 de maio de 2010

Move on


Tudo embolorado por dentro, tapetes que acumulam o pó dos dias, louça suja na pia do peito. Objetos esquecidos nas mesas com a bagunça do almoço de semanas atrás, cortinas pretas de fumaça, ninhos de aranha nos cantos da parede. Eu estava me sentindo assim, por dentro, uma casa abandonada na metade da semana, no meio do mês, sozinha com toda a sua sujeira. Muito escura, muito ridícula, muito parada, muito nada. Eu não sou assim, eu preciso estar cheia, alegre, preciso ter pelo que lutar, não posso ficar parada que eu deixo de ser eu. Não posso não querer apertar o play, viver para sempre no pause e deixar o pó acumular, a sujeira se fazer. Eu não sei ser assim, não consigo conviver com meu problema e meus defeitos de dentro de mim, preciso me ocupar com outras dores e outras pessoas para não lembrar das minhas dores. Ajudo todo mundo, cuido do coração de todo mundo, rego as plantinhas e lavo a louça suja do interior de todo mundo, e deixo a minha enferrujar. As engrenagens do meu peito pararam de funcionar há séculos, deixando a fábrica sem uso, deixando um lixo enorme por dentro. Eu sei cuidar dos outros, eu fui feita para isso. Mas já acabaram as opções, já cuidei da dor de todos os meus amigos e a maioria já aprendeu a tomar conta dos seus amores e suas situações problemáticas. Me vi obrigada a olhar bem dentro de mim, e encontrei toda essa barbaridade de sentimentos abandonados. Mas quero sair correndo desse lugar frio, vazio e mal cuidado, quero cuidar de mais alguém, que por algum desleixo do destino ainda não apareceu.
Corri para meu guarda-roupa, escolhi desesperada uma roupa mais tchan, coloquei salto vermelho - abusada e fatal - escureci os olhos esfumaçados de íris profundamente azuis herdadas do meu pai, e senti um aperto tão grande que me apressou. Sou pessoa muito calma, paciente, que capricha nos detalhes e vagarosamente resolve cada situação. Mas buraco no peito não tem solução óbvia, não tem cura pela nossa vontade, não tem remédio algum. A solidão assusta, faz tomarmos medidas drásticas, ou ficarmos parados. Eu não sei ficar parada, então apelo para a primeira opção. Meu lado escorregadio e impaciente se mostrou naquele instante, saí de casa com o coração envolto em uma corrente cheia de espinhos que se apertava mais a cada hora, e que parecia que ia explodir. Não, eu não podia deixar, eu tinha que fazer parar. Não sei ser ferida, nem aceitar machucados espalhados como manchas roxas - que quando criança moleca apareciam sem perceber - por todos os lados. Agora eu percebia cada uma, e não sei aceitar, não deixo. Porque eu não sei cuidar dos meus machucados, sou fraca, tola, patética demais pra mexer na poeira e pratos sujos. Precisei sair correndo, cair na balada e ir pra pista de dança.
Eu sei que a minha hora vai chegar, vão tapar com flores esse vazio no coração, vão perfumar e aconchegar nas mãos como eu sempre faço com o dos outros. Massageio e cuido. Danço, jogando os cabelos, erguendo as mãos, de olhos fechados. Sinto o clima, as notas musicais escorregando pelas curvas do corpo, se derramando do céu como mel no rosto, peito, braços, pernas. Danço, expulso meus demônios, quero gritar mas substituo a voz pelos movimentos. Assustei minhas dores invés de deixar elas me assustarem, dancei como se você estivesse me olhando escondido entre as pessoas do bar. Não sei quem você é, nem te conheci ainda, mas sei que um dia você vai me ver por aí e lembrar daquela garota doida que dançava pra arrancar coisas ruins de si. Vai lembrar de como eu me joguei e de como eu transformei em mel o que mais parecia merda. E você me espia sorrindo enquanto eu jogo minha euforia na cara de todo mundo que está ali, de como eu me mostro forte mesmo sozinha dentre todos aqueles casaizinhos bestas que não vão sequer chegar aos pés do nosso amor. Faço uma pausa e pego uma bebida, certa de que se você estivesse ali, poderíamos nos topar e eu sorriria mesmo com um rombo no peito, cabelos bagunçados e me sentindo suada, suja. A bebida desce quente, não encontrei ninguém. Mas pouco importa agora, volto a dançar e quero me divertir até amanhacer, até clarear e todos sumirem dali, até tudo que machuca sumir daqui. Volto para casa e continuo querendo ser de alguém, é uma coisa que nunca passa. Maquiagem borrada e cabelos sujos são as marcas da batalha que travei dentro de mim, que encarei corajosa e que saí vencedora. Já diz o ditado: venci a batalha, mas a guerra não. Expulsei os males do coração, tirei tudo ruim. E mesmo que nada passasse, que eu continuasse louca, destrambelhada e sozinha, de uma coisa eu tive certeza: hoje cuidei de mim.

Clarissa M. Lamega

7 comentários:

Mayson Laércio disse...

assim, o livro é meio que uma biografia,que começa na amizade dele e da paula...
fora as cartas aos seus amigos, tem outros textos dele, muitas fotos, como alguns amigos viam ele...
ela fala tanto sobre ele... sua tristeza...
começei a ler agora... mas parece ser perfeito ;)


ha pois eu vou baixar, só que tb num vou ler td, morro d pregiça de ler pelo pc ^^

Bjos Clarissa.

Gabriela Furtado disse...

Ao ler cada palavra que escreveste meus olhos se enxeram de lágrimas, por que me encotrei em cada descrição feita e lembrei que eu preiso cuidar mais de mim, também!
Beijos Flor
tá MUITO lindo

Franck disse...

Cuide de vc hj e sempre, deixe a alma, o peito, o coração sem os fantasmas interiores... Belo texto!
Franck

Thaís disse...

belo texto,belo belo belo.
�timas met�foras,afinal nada melhor que
nosso interior,nossa alma para criar belas met�foras! *-* adorei o blog! :)

Clarissa M. Lamega disse...

ai ai, Gabriela, me deixa tão completa de coisas boas saber que você se identificou, e que compartilha todo esse sufoco! mas espero que passe logo, viu? Pode deixar, Franck, estou cuidando sim, meio aos trancos. Obrigada, Thaís *-* fico contente que tenha gostado, apareça sempre!

beijos

Amanda Arrais disse...

Absurdamente inexplicável o quanto me identifiquei com tudo que tu escreveste, nem consigo explicar. É uma bagunça, mas uma bagunça tão calma e silenciosa que às vezes não ouso perturbar o caos. Cuidar da gente em primeiro lugar, mas às vezes, como já diria Caio Fernando, a gente bota nossas dores no bolso pra cuidar das dos nossos amigos, faz parte.
Lindo o texto como sempre. Me encontrei excrita em cada linha!

Clarissa M. Lamega disse...

Ai, que bom Amanda! não pelo vazio corrosivo que compartilhamos, mas sim por ter se identificado tanto! é bom saber que não somos só nós que sofremos um certo problema, e deveríamos sim cuidar dele em primeiro lugar... esse trecho do Caio é muito meu! haha

beijão

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